Quando o câncer bate à nossa porta

Há circunstâncias na vida que nos colocam de frente com uma realidade muitas vezes negada ou ignorada. Antes de se obter um diagnóstico de tumor maligno, por exemplo, este é sempre um problema ‘do outro’, algo fora do nosso script particular e que, somente com muito azar, poderá se imiscuir no nosso dia a dia. Pois bem, nada como cruzar uma linha tênue para nos sentirmos O outro e nos darmos conta de que o impossível está agora em nossas vidas de modo tão palpável, em todos os sentidos. O que nos resta é partir para o enfrentamento, com objetividade e – um conselho – certa frieza: feita a retirada do tumor localizado, se for o caso, inicia-se o penoso tratamento para a cura ou para garantir que células com crescimento anormal não se disseminem furtivamente pelo organismo; ou não necessariamente nessa ordem, pois há distintos protocolos para cada caso, podendo o tratamento ser indicado antes de uma cirurgia; ou mesmo pode não existir cirurgia, em casos de tumores cuja localização não é determinada. Mas, não importando a ordem ou o tipo de doença, o fato é que a terapêutica pode ser para o paciente a cura e/ou a garantia de que ele poderá respirar aliviado nos anos futuros.

O câncer, ou melhor, o tratamento mostra sua cara na cara do paciente: olheiras, fraqueza, ausência de pelos no corpo e na cabeça – esta a mais notória e que gera, enfim, uma espécie de luto que, devemos sempre lembrar, é temporário. Esses efeitos são apenas a síntese aparente de toda uma situação que envolve maratonas de exames e procedimentos que precisam ser assumidos com objetividade e seriedade pelo doente. Familiares e amigos são de importância inestimável durante todo o processo. E para que a empreitada se realize de modo sereno e com a mínima sobrecarga emocional, é fundamental que o paciente se aproprie do seu corpo como algo a serviço de suas expectativas e vontades, e não abra a guarda para que se instalem o desânimo e a falta de perspectivas. A resiliência precisa ser parceira constante nessas horas, e o foco deve se desviar da doença para as coisas que o paciente pode e tem condições de fazer: levar uma vida mais próxima do normal, apesar das limitações, e ser sobretudo afirmativo, não embarcando nas expectativas dos outros.

Acredite: a gente sempre pode mais do que pensa! Por desconhecimento, o imaginário popular não espera nada de uma pessoa em tratamento oncológico – ela se torna incapaz, e precisa estar resguardada de todo contato com o mundo normal, abdicando de muitas atividades que antes realizava (salvo em casos muito específicos, é claro). Essa percepção pode ser comprovada entre as pessoas que forjam uma expressão de quem entra numa capela mortuária para cumprimentar a viúva. O ‘doente’, para cumprir o que se espera dele, precisa agir como enfermo, sentir-se apartado da sociedade, resignando-se com sua condição e tornando-se apassivado. Por apassivado refiro-me ao sujeito que faz quimioterapia sem sequer procurar saber o que estão injetando no seu corpo e os efeitos deletérios das substâncias químicas, e volta para casa cheio de incertezas e sem conhecimento. Porque nessa situação, até isso – o conhecimento – lhe proporciona poder de decidir sobre si e suas reações e emoções e de julgar sobre seus limites: é a ele que cabe isso, e a mais ninguém.

O entendimento sobre o câncer e seu tratamento precisa ser repensado, a começar pela clara pronúncia dessa palavra – tabu para a maioria – levando-se em consideração que a incidência da doença está cada vez mais generosa. Em qualquer de suas formas, o câncer está se banalizando e precisamos lidar com isso – células anormais que se multiplicam podem se tornar uma intercorrência na vida de qualquer um, por inúmeras causas. E pronto. Com esse quadro que se apresenta, a ordem do dia passa a ser o foco na vida em si, sendo imperioso enfrentar a doença com determinação e maturidade, sem autocomiseração e sem culpar quem esteja à nossa volta. A doença é solitária e de cada um, porém pode ser vivenciada de forma conjunta na mais santa paz. O portador precisa estar consciente de que as dificuldades ensinam muito mais do que as alegrias, e o que é sério pode ser o pulo do gato para que ele passe a encarar qualquer problema com mais sabedoria e senso de oportunidade.

Como alguém que de repente se viu às voltas com esse problema, tive momentos de pura diversão (sim, diversão!) quando frustrei a expectativa de pessoas conhecidas que se aproximavam, esperando falar com alguém desesperançado e em estado terminal. Ou quando caminhava na praça, mais rápido até do que a maioria que também está cuidando do corpo, um direito de todos. As reações eram surpreendentes. E é muito bom surpreender de forma positiva, pois penso na missão que posso acolher no sentido de ajudar a desmistificar um pensamento tão cristalizado na mente de quem desconhece a doença e suas nuances, cuja imagem é necessariamente a de um ser fragilizado e sem condições de levar a vida adiante. Está aí uma oportunidade que passei a considerar: propor outra forma de as pessoas enxergarem o paciente em tratamento, sem se imbuírem de pena, constrangimento ou mesmo perplexidade. E isso quem decide é o próprio sujeito que enfrenta a doença/tratamento: ao verem-no encarar esse momento com serenidade e maturidade, as pessoas certamente serão chamadas a repensar sua visão acerca do problema. Isso também pode ser terapêutico para quem nunca ou ainda não teve contato com a doença. Além disso, é libertadora a postura transgressora do paciente quando ele resolve exercer seu direito de ir e vir e de buscar sua autopreservação e cuidado com seu bem maior: a saúde física e mental. Isso inclui frequentar cinemas ou ir a happy-hours com os amigos, ou mesmo circular num supermercado. Ele não pode ser excluído da vida pelos outros, porque não pode, antes, se afastar da própria vida. É papel dele se impor, de certa forma, para que o vejam como alguém capaz de gerenciar a própria vida, e que colocou o câncer no seu devido lugar: como coadjuvante.

 


Marília Marques Lopes
Doutora em Linguística pela PUCRS
Porto Alegre, RS