O começo

Era uma sexta-feira, 1º de junho de 2018, e eu estava na aula de conversação em inglês. Tinha recém retornado de uma viagem ao exterior, a trabalho, e comentava do alto valor do dólar. Na sequência, uma de minhas colegas (Jerusa, a Giana não tinha ido aquele dia) falou que estava sentindo na pele o valor do dólar pois tinha que pagar naquele dia um exame de rastreamento genético que ela estava fazendo para investigar se tinha mutações genéticas positivas para câncer. Comentou que tinha mãe e tia com câncer de mama e que, se desse positivo, ela tiraria suas duas mamas sem pestanejar. Nisso, tanto eu quanto minha super professora Vanessa (ela é ótima mesmo, mais do que uma professora, uma pessoa especial!) ficamos meio pasmas, dizendo que não tiraríamos, somente se o câncer aparecesse de fato. Concluímos que isso era sim uma decisão muito pessoal.

Por coincidência, na segunda-feira seguinte, eu tinha já marcado um horário na minha ginecologista. Ainda não era época da revisão, pois tinha feito tudo em meados de janeiro, mas tinha percebido um caroço na mama esquerda já há mais de mês. Estava tranquila, pois minha idéia era só pegar a requisição para fazer uma punção em mais um daqueles cistos repletos de líquidos que me incomodavam há vários anos, mas que tinham diminuído em frequência, de uns tempos para cá. Durante a menopausa, eles tendem a diminuir. Ah, importante contextualizar, tenho 53 anos.

Ao chegar para a consulta, ela entendeu que era realmente mais um e me deu a requisição. Lembrei que tinha que ter a requisição de análise patológica do líquido também. Contudo, ao invés de ela me dar uma requisição de análise citopatológica (para o líquido) me deu anatomopatológica, para tecidos. Isso vai ser importante daqui a pouco.

Durante a consulta, comentei sobre uma reportagem que havia lido na qual era dito que se a pessoa teve câncer uma vez, deve ficar alerta para possíveis novos cânceres. Há muitos anos, retirei o colo do útero em função de um NIC III (nível de gravidade de uma ferida causada por possível HPV). Além disso, meu marido, Fernando, tinha se operado de um câncer de próstata em março deste ano. Ou seja, o assunto câncer estava muito atual em nossa casa. Por isso, estava querendo saber o que deveríamos fazer no sentido da prevenção.

A primeira coisa que ela me disse foi: – “Mas Denise, aquilo no teu útero não foi câncer! Poderia vir a ser, mas nunca saberemos” – Para mim, isso foi uma surpresa! Sempre imaginei que tinha tido câncer de colo de útero. Além disso, comentou que eu estava fazendo tudo certo, que não tinha mais o que investigar. Saí de lá tranquila.

Como aquele caroço estava me incomodando, antes mesmo da consulta eu já tinha marcado hora numa clínica de exames radiográficos para a própria terça de manhã. Ao chegar lá, já encontrei algo estranho. O nome que tinham colocado no meu horário não coincidia com o meu (sou cliente deles há anos). Além disso, as requisições estavam estranhas pois como poderia solicitar anatomo quanto a questão era citopatológica. Aí a médica que faz os exames  foi chamada na recepção e perguntou: – “Como assim, anátomo, tua médica não disse nada? Está estranho isso… vamos fazer o exame, mas vais ter que trazer nova requisição”. Fiquei pensando: nossa que confusão! Isso nunca aconteceu! O que ela queria dizer com “tua médica não disse nada? Do tipo, “será que não tua médica deu a entender que tu pode ter câncer, mas tu não entendeu?”. Parecia que tudo já estava apontado para o maldito resultado final…

Fazendo o exame, já com o aparelho sobre minha mama esquerda, a médica de início perguntou: – O que é isso? Isso aqui não estava aqui em janeiro. – Tava sim, um nódulo com líquido. Não é isso que cresceu? – respondi. – Não, esse é diferente. Deixa tudo assim que já volto – disse à assistente, referindo-se aos instrumentos para o exame. Na hora, pensei: – Xi, acho que me dei mal. Na volta, procedeu ao exame, mediu o nódulo – 2,9 cm – e disse que teria que retirar tecido do nódulo para fazer um exame anatomopatológico. A partir desse momento, comecei a ser tratada de forma diferente, com aquele carinho exagerado. Na saída, uma das pessoas que me atendeu na recepção e que estava fumando na rua me perguntou se tinha dado tudo certo, se estava tudo bem… Pela experiência, elas já tinham certeza do diagnóstico e passaram a ter pena, a tratar com mais atenção, carinho. Bem ruim isso, diga-se de passagem, mas dá para entender.

Entrei no carro e liguei de imediato para o Fernando (meu super companheiro, meu esteio) que estava no Rio, a trabalho (ele viaja quase toda a semana) e disse: –Acho que f… – e contei brevemente sobre o exame. Eu tinha sentido o climão! Então ele disse: – Eu não tenho estrutura para ouvir isso agora. Claro, fazia dois meses e meio da cirurgia de retirada da próstata, super bem sucedida, a qual ele tinha enfrentado sem dividir com os outros, só com a família (parece que isso é mais próprio dos homens). Disse que preferiria que fosse tudo com ele de novo, pois não gostaria de me ver passar pelo que ele tinha passado. O processo de notícia de câncer até a cura é bem complicado…E ele arranjou estrutura para ouvir!

Enfim, isso foi o começo de tudo! Era como se eu soubesse de tudo desde a aula de inglês na sexta-feira. Não precisa dizer que dormir da terça para a quarta, sozinha (digo, marido viajando), foi bem difícil!!

Dali, já liguei para a minha ginecologista, que entrou em contato com a médica radiologista e disse que conseguiria um horário para mim no com um mastologista. Na quinta-feira, já saiu o resultado positivo para câncer. Receber a ligação da ginecologista com essa notícia foi complexo, mas como eu já vinha processando a ideia, deu para encarar. Na sexta, eu e o Fernando já estávamos com o mastologista planejando o tratamento. Tudo muito rápido!

Depois disso, minha decisão foi fazer o que tinha que ser feito. Tive consulta com a oncologista na segunda-feira posterior a essa semana louca, e estava fazendo minha primeira sessão de quimioterapia uma semana depois. Ou seja, em duas semanas, já tinha iniciado tratamento e tendo os próximos meses relativamente planejados. Vou dizer que isso foi a melhor coisa que fiz naquele momento! Consultar rápido, ter diagnóstico rápido assim como fazer o que tem que ser feito. Tudo isso alivia muito! O pior de tudo é a insegurança, a dúvida, a ambivalência… Essas fazem tua fantasia extrapolar! Isso atrapalha muito!

No meio disso, tinham meus dois filhos (Leonardo e Henrique, 18 e 21 anos). Eu que queria contar a eles. Então, fui aos poucos: o gato subiu no telhado (fiz um exame e deu ruim), a gato caiu do telhado (estou com câncer). Coitados, primeiro o pai! Agora a mãe! E cada um com seus enfrentamentos também! Vestibular, adolescência… não é fácil! Enfrentamentos profissionais, carreira de líder empresarial júnior! Nossa! Mas posso dizer que eles estão se dando muito bem frente a tudo isso! E a gente ajuda quando assume tudo frente a eles: sim, tenho isso mesmo, estou enfrentando e vamos sair bem dessa. Vejam o pai de vocês! Está aí, belo e forte, trabalhando normalmente.

Outro ponto importante foram as amigas! Muito apoio, muita força, né Clarissa e Claudia? Muitos cafés, conversas, risadas!

E o trabalho? Sou professora universitária, dou aulas, trabalho com pesquisa, gosto de atuar na gestão acadêmica, faço de tudo na minha universidade! Tanto que fui “empurrada” para ser a próxima diretora do Instituto de Psicologia (ninguém quer, tem que ser tu, Denise. Tu tens o perfil, o Instituto precisa de ti!)! Como fazer? Largo tudo? Terei condições de assumir? E meu grupo de pesquisa? Eles dependem de mim! Tem defesas, tem bancas, artigos. E o CNPq? Conseguirei fazer as avaliações naquelas semanas de trabalho super intenso?

Mais uma vez, planejar o tratamento, contar para as pessoas do câncer e o apoio da oncologista foram fundamentais. Ela me disse: – Denise, tem dois tipos de pacientes, aqueles que gostam do trabalho que fazem e aqueles que não gostam. Tens direito à afastamento. Dependendo de qual tipo tu és, te dou afastamento, mas não precisas te afastar. – Nossa, foi muito bom ouvir isso! Eu realmente gosto de trabalhar, me realizo com o que eu faço! Ela só me pediu flexibilidade. – Tem dias que não vais conseguir – ela me disse. Perfeito! Trabalhar fazendo o que gosto? Posso deixar de dar aulas (eu até que gosto, mas já faz 27 anos que faço isso, meio que cansei) e me dedicar ao que gosto mais hoje, pesquisa, meu grupo de pesquisa, CNPq, congressos, pós-graduação. Tudo de bom!

Dessa forma, fui para a primeira reunião de departamento e PPG (programa de pós-graduação) após saber da notícia e falei a todos dos meus planos. Sem dúvida, é uma notícia que ninguém quer ouvir, é um choque! Tenho ciência disso, tudo já estava trabalhado e traçado na minha cabeça, mas sei que foi difícil para o meu departamento. Todos tinham colocado suas expectativas em mim como próxima diretora e tal. A “troca das cadeiras” já estava relativamente planejada (na universidade pública, são muitos os cargos administrativos e de coordenação de comissões, então acaba que muitos se envolvem de uma forma ou outra com esses cargos, tendo que trocar de postos de dois em dois anos). Agora, tudo teria que ser replanejado, sem a Denise por um tempo, aquela que abraça todas, não tem ruim. Mas tudo se ajeita, as pessoas não são insubstituíveis!

Só para finalizar esta parte do texto e dar uma ideia do processo de tratamento ao qual estou me submetendo, vou explicar um pouco quais serão os passos. Vou primeiro fazer oito sessões de quimio, quatro da vermelha e quatro da branca, de 21 em 21 dias. A vermelha, conforme me foi falado, dá mais enjôo e a branca mais dor nas pernas/articulações. Posteriormente, farei a cirurgia e, então, a radioterapia. Algumas pessoas me perguntam se vou retirar uma mama ou as duas. Respondo: não sei. Nesse processo, tenho aprendido que cada decisão tem seu tempo. Nessas horas, focar nas decisões mais imediatas é tudo. A ideia é mesmo não pensar sobre o depois. Vai ter tempo para isso, um pouquinho do mecanismo de defesa de negação vale a pena nessa hora.

 


Denise Ruschel Bandeira
Psicóloga, Professora Universitária
Porto Alegre, RS