Cicatrizes

Meu corpo é como um livro. Cheio de marcas e cicatrizes que contam minha história.

A primeira que tenho memória é de um tombo na escola, tinha 9 ou 10 anos. Escorreguei e bati o supercílio direito no canto da classe. Foi a primeira vez que entrei no hospital. Morri de medo, tudo era gelado. Quem diria que escolheria esse lugar gelado pra trabalhar…

Depois foram os joelhos ralados, inúmeras vezes. Sempre nos momentos de traquinagem, uma espécie de confissão. Nunca soube mentir muito bem.

Em 2002, com 26 anos e já médica, tive uma pneumonia e precisei ficar hospitalizada para receber antibióticos na veia (entre outras coisas). Num determinado momento, as veias se rebelaram e sumiram, obrigando meus médicos a garantir um acesso venoso profundo. Ganhei então uma cicatriz abaixo da clavícula esquerda que, depois que saí do hospital, sempre me lembrava que não sou melhor que ninguém. Já havia estado do “lado de lá”, e havia experimentado praticamente todas as sensações e dificuldades de ser “um paciente”. Ela era bem pequena e, com o passar dos anos, praticamente sumiu.

Uns anos mais tarde, num ataque de benevolência, resolvi lavar a louça do almoço de domingo e cortei três dedos da mão esquerda. Cortes profundos causados por um prato refratário que estourou na minha mão. Claramente precisava suturar, mas a covardia foi tanta que colei esparadrapos beeeeem apertados e rezei que os dedos colassem de novo. Colaram. Deu certo. Escapei da sutura e carreguei a covardia. Até hoje olho para as cicatrizes dos dedos e lembro que sou o próprio exemplo do “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”.

Aí veio minha fase atleta! Corredora de rua. Daquelas que correm na chuva. No inverno. As 06:00 da manhã. Caí de joelhos, na frente do hospital (eu e os hospitais, que relação conturbada essa..). Ralei MUITO as duas pernas. Fiz cicatrizes imensas, vermelhas, horrorosas, que demoraram um ano para voltar ao normal. Era início de verão, usar saia sempre significava dar explicações. No início tentava maquiar os joelhos mas não dava muito certo. Foi quando decidi que não tentaria mais disfarçá-las e, quando as pessoas (sempre) me perguntavam o que tinha acontecido, simplesmente dizia sorrindo: “Caí!” Depois disso nunca mais senti vergonha de usar saia, nunca mais corri com preguiça de tirar os pés do chão e passei a ter um cuidado extra onde piso.

Em 2016, no ano do câncer, bati todos os recordes! Biópsias e cicatrizes pontuais. Passei então a colecionar cicatrizes cirúrgicas (essas eram novidade no meu repertório..). Na axila direita mora a minha preferida, a do linfonodo sentinela que era negativo para câncer. Tive tanto medo que os gânglios da axila estivessem comprometidos que, quando tive o resultado negativo, passei a cultuar e exibir a cicatriz da axila com o orgulho de quem pendura um diploma na parede. Junto com ela ganhei as cicatrizes da mamoplastia redutora. Grandes como minhas mamas eram, em forma de T invertido e com recorte das aréolas. Elas terminam nas laterais do meu tórax e fazem um “biquinho” de cada lado, quase simpáticos. No começo não gostava muito deles, mas com o tempo, me afeiçoei aos biquinhos e hoje me divirto empurrando eles pra dentro, só pra ver eles saltarem de novo, como se estivessem alegres!! Essa cicatriz traz uma importância gigante. Ela mudou minhas formas, como se fosse um “antes e depois”. Ela marcou o início da minha vida em antes e depois do câncer. Ela pôs um ponto final numa pessoa e começou a escrever a outra. Ela vai me lembrar sempre quem eu sou, um ser em constante transformação. Lembra daquela cicatriz que ganhei em 2002? Pois bem… Acabou sendo substituída por outra bem maior mas com a mesma finalidade, garantir um acesso venoso profundo para que minhas veias suportassem o bombardeio que estava a caminho em forma de quimioterapia. A coitadinha da outra cicatriz foi literalmente engolida pela nova, como se a nova dissesse: “você não fez bem o seu trabalho de colocar essa garota no lugar dela, onde já se viu uma cicatriz sumir? Sai pra lá, deixa comigo. Sou inesquecível!” E, por fim, a cereja do bolo. A última mas não menos importante. A minha malvada favorita. A cicatriz da mastectomia. Ela quase acompanha a cicatriz da mamoplastia mas quando vai chegando no fim, ela “escapa da mão da mãe” e foge numa suave curva para cima, como um sorrisinho daqueles sarcásticos com o canto da boca. Parece um erro de traçado, quando você quer fazer uma linha reta mas o lápis escapa num risco involuntário. Ela está ali para me ensinar a enxergar beleza na imperfeição.

Tenho 40 anos hoje e, se tudo der certo, e eu continuar teimosa em viver, devo ter mais uns 40 anos pela frente. Provavelmente vou colecionar mais algumas cicatrizes no meu corpo. Tudo bem. Tenho muitas páginas em branco ainda para escrever

 


Juliana Rizzieri
Pediatra e voluntária da ONG Projeto Camaleão
Porto Alegre, RS